No começo deste ano, o amigo Farah me lançou um desafio: reconstituir o rosto de uma personagem histórica. Havia duas condições iniciais: não conhecer sua identidade e me basear em três referências visuais e em uma descrição física bastante resumida. Começou a troca de emails e mesmo com a escassez de informação, Farah não economizou nas palavras em nossas conversas sobre as características da figura. Focamos no período histórico, descrições do corte de cabelo, peso, altura e numa pequena mancha que havia em seu pescoço. Mesmo com pouquíssimos registros, a qualidade da discussão em torno do projeto acabou enriquecendo muito o briefing.
Quando apresentei o primeiro esboço, ele me disse “gostaria que tivesse as feições um pouco mais rústicas”. Apesar dos traços angelicais, não sabia que estava desenhando uma santa. No segundo esboço, tirei qualquer sugestão de beleza. Era o rosto de uma camponesa medieval, que aparentava mais do que dezoito anos.
A terceira versão era uma combinação da primeira com a segunda. Quando a recebeu, Farah me pareceu bem satisfeito e me revelou quem era a retratada: santa Joana d´Arc. E pediu que, antes de finalizá-la, eu fizesse uma prece escrita por ele mesmo. Um trecho “eu vos rogo: revele seu rosto em minha imaginação e abençoai minhas mãos para que eu desenhe seu retrato, de modo que, contemplando-o com os olhos, as pessoas a alcancem com o coração”. Apesar de não ser uma pessoa religiosa, aceitei mais aquele desafio. O quarto esboço encerrou essa etapa do trabalho.
A ilustração foi apresentada na Academia Brasileira de Hagiologia, em 29 de março. E, segundo o Farah, logo chegará na terra de santa Joana.
Por Fábio Tucci Farah
“Como era Carlos Magno? E santa Maria Madalena? Com o avanço das técnicas de reconstituição facial – que combinam perícia forense a programas de computador -, é possível saber, com certa precisão, como eram os rostos de personagens históricos. Basta dispor de seus crânios. Nessa seara, o trabalho dos brasileiros Cícero Moraes e José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia, tem ampla repercussão internacional.
Seria possível reconstruir a fisionomia de alguém sem ter acesso ao crânio? Foi o desafio que assumi, com o artista Marcelo Braga, na busca do verdadeiro rosto de santa Joana d´Arc. Em 1431, a heroína francesa foi condenada à morte na fogueira. Provavelmente, seu crânio explodiu por causa do vapor acumulado. De qualquer maneira, seus restos foram reunidos e lançados ao rio Sena – na tentativa de evitar que se tornassem relíquias ou fossem utilizados para feitiçaria.
Sem o crânio, nossa reconstituição facial se baseou em todas as descrições possíveis – e confiáveis – da aparência de Joana d´Arc e em algumas referências visuais. Entre elas, a única imagem contemporânea que chegou aos nossos dias – um esboço na margem de um documento – e, sobretudo, um monumento construído sobre a Pont des Tourelles, em Orléans, de três a sete décadas após o martírio. Embora o original não tenha sobrevivido, serviu de inspiração a descendentes da família d´Arc em homenagens à ilustre antepassada, na catedral de Saint-Étienne de Toul e em sua cidade natal, Domrémy.
Com o rosto esboçado, Braga fez uma oração, rogando à santa que o ajudasse na empreitada. Certa noite, teria recebido, em sonho, a visita de Joana. Na manhã seguinte, com sua lembrança quase tangível, finalizou o retrato artístico. O resultado foi apresentado, em primeira mão, durante minha posse na Academia Brasileira de Hagiologia, na semana passada . O evento foi encerrado com uma prece coletiva que compus à santa Joana, aprovada por Dom Odilo Pedro Scherer, arcebispo e cardeal de São Paulo.”